O defunto faminto

Ednardo Rodrigues Brasil

“Bota na conta do Chico Prego!” Essa frase era comumente dita nas dependências do comércio de meu pai, fazendo uma insinuação divertida de que a mercadoria adquirida, geralmente no modo fiado, não ia ser paga.
Chico Prego não era uma figura fictícia, era a alcunha de Francisco Ramiro. Era amigo muito querido de meu pai e, na verdade, não sei como ganhou essa fama de mau pagador, o que fazia com que as pessoas usassem seu nome, de certa forma, de modo pejorativo. Mesmo assim, o homem não se importava com as brincadeiras.
Chico tinha um pequeno bar lá na Vila Guilherme, uma extensão da vila de Boqueirão. Nas prateleiras, algumas garrafas de cachaça e um pacote de cigarro, além de maços abertos para vender por unidade. No centro, uma mesa de sinuca de nove bola. Num canto, uma pequena mesa de madeira, onde com alguns amigos o dono do estabelecimento jogava um carteado, praticamente o dia todo e todo dia.
O homem de meia idade estava no segundo casamento. Um tempo depois de ficar viúvo, casou-se com uma moça a qual conheci apenas por Lurdite. A mulher simples e humilde se dedicava exclusivamente aos cuidado com o marido, Chico, e seu filho de mesmo nome.
As conversas que sempre circularam davam conta de que o pai de Lurdite sempre foi contra a união da filha. Por essa razão, Chico e o sogro eram, reconhecidamente, desafetos. Mesmo assim, o homem nunca deixou de frequentar a casa da filha, embora isso fosse para Chico altamente indesejável, pra não dizer insuportável. Mas era passageiro, logo, o sogro voltaria para Itatira, onde residia, pensava o péssimo anfitrião.
Seu Manoel, pai de Lurdite, morava no vizinho Município acompanhado apenas de sua senhora que, mesmo enfrentando uma doença grave, cuidava e servia de companhia para o seu velho esposo. Os filhos tinham se perdido pelo Mundo, sem dar sequer notícias, com exceção de Lurdite, claro.
Num fatídico dia, eis que, de repente, a esposa de seu Manoel partiu dessa pra melhor – eufemismo comumente usado no interior quando morre alguém -, deixando o velho homem completamente sozinho e sem cuidados. O ocorrido não deixou outra opção para a filha próxima a não ser levar o pai para sua casa, mesmo a contragosto do marido.
A decisão da mulher deixou Chico Prego, simplesmente, inconformado. Receber o sogro como visita já era viver uma espécie de Purgatório, agora, morando com ele, seria verdadeiramente habitar o Inferno. Porém, não tinha saída. A mulher deixara bem claro: ou ele aceitava seu pai, ou ela iria cuidar deste em sua casa, deixando Chico sozinho.
Pouco tempo depois de mudar-se para a casa da filha, seu Manoel foi acometido de um mal incurável. Procurou médicos, tentou tratamentos alternativos, mas a gravidade da doença somada à idade avançada, levaram o senhor a ser desenganado pelos médicos. Passou a levar uma vida vegetativa; já não se alimentava e, sob sentinela, aguardava o momento derradeiro.
Sereno e de forma silenciosa, numa madrugada, seu Manoel partiu para o outro Plano. Mal dera tempo de colocar uma vela na mão daquilo que sobrara de um ser humano. Não houve choro nem alarde, apenas um Padre Nosso e uma Ave Maria entoados por dois ou três cristãos penitentes que, mesmo entre cochilos, ainda permaneciam àquela hora ao pé do leito de morte do pobre homem.
Nem bem amanhecera e Chico já começou as providencias para o sepultamento do sogro. Chamou uns dois parceiros de jogo para abrir a cova. Munidos de picareta, pá, enxada e uma garrafa de cachaça, oferecida pelo genro, os homens rumaram ao Cemitério de Lembranças. Não demorou muito e os voluntários voltaram com a tarefa cumprida, segundo a determinação do amigo.
Geralmente, espera-se vinte e quatro horas para que aconteça o sepultamento, mas Chico Prego parecia ter muita urgência em enterrar o velho. Alegava que, além de doente, seu Manoel já vivera o suficiente e, por fim, que não se guarda defunto em casa. A discussão seguia ao redor da mesa onde repousava o corpo sem vida. As opiniões eram diversas, mas a palavra final era de Chico, afinal, este era genro, dono da casa e, de certa forma, responsável pelo homem. A palavra de Chico prevaleceu e este encarregou seu amigo, Luís Cavalcante, de comandar o cortejo. Justificou a sua não ida ao cemitério, alegando problemas alérgico.
Luís era companheiro pontual de carteado. Não havia um dia em que não visitasse a casa de Chico. Gostava de tomar uma cerveja e, apesar de brincalhão, não hesitava em falar o que pensava na frente de quem quer que fosse. Além do mais, mesmo sem maldade, falava palavrões o tempo todo.
Cavalcante solicitou de Lurdite uma rede, onde colocou o corpo. Foi a um curral próximo e trouxe um pau da porteira, resistente o bastante para suportar o peso do defunto na sua última viagem. Colocou em cada uma das extremidades do pedaço de madeira roliça um punho da rede e, conforme a vontade de Chico Prego, poucas horas depois do falecimento do homem, pegaram o caminho rumo ao campo-santo. Sob alguns comentários maldosos, porém abafados, o cortejo seguiu sob o sol escaldante do meio dia, acompanhado de não mais do que quatro ou cinco homens, que se revezaram na condução da rede. Chico, como já foi dito, ficou em casa na companhia da esposa chorosa.
Algumas horas depois, os homens já estavam de volta ao bar de Chico, tirando os “micróbios do cemitério” com mais uma garrafa de cachaça. Naquele momento, o genro indagou a Cavalcante se o enterro do sogro transcorrera sem problemas – dizem as más línguas que ele queria garantias de que o velho estivesse bem enterrado, sem risco de volta. O amigo, com o jeito debochado de sempre, relatou:
Rapaz, não aconteceu nada demais! Mas, depois da gente andar uns dois quilômetros debaixo do sol, lá no alto da fazenda Belmonte, já próximo ao cemitério, eu que ia na frente levando a rede, senti algo se mexer. Quando virei pra ver o que era, o velho levantou a cabeça e disse: “Lurdite, me dê um caldinho!” Aí, eu respondi: “estória de caldo, véi!” Já “tamo” aqui, “vamo” perder a viagem, não!”.
Mesmo sem confiar nas conversas de Cavalcante, dizem que o medo do fantasma do sogro assombrou o genro por um bom tempo. Foi apenas mais uma coisa que botaram na conta do Chico Prego, no entanto, esta rendeu-lhe muitas noites mal dormidas.

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