A saga de um goleiro

Ednardo Rodrigues Brasil

Nos primeiros anos da década de 1990, o futebol ocupava quase todo o meu tempo e pensamento, afinal, eu não tinha mesmo ocupação. Fracassado nos estudos, usava minhas horas vagas para me dedicar a esse esporte, pois no restante do tempo, estava muito ocupado bebendo cachaça. Os finais de semana eram para mim um dilema, visto que este era o período mais propicio para as minhas duas atividades preferidas. Tinha que sempre optar por uma. Era tão bom de bola quanto de copo e ter de escolher entre um e outro era terrível.
Tínhamos em nossa comunidade um time quase imbatível, com vários jogadores se destacando no cenário amador regional. Mas, de longe, o que mais apareceu na nossa equipe foi o goleiro Lurdécio, apelidado, por conta das características físicas, de Maguila – fazendo referência a um famoso boxeador brasileiro da época.
Além de excelente goleiro, Maguila era um aluno aplicado que vislumbrava um futuro mais promissor, e acabou usando de seu talento em campo para buscar o seu objetivo na sociedade. Por conta do futebol, acabou se mudando para a sede do município, onde passou a morar com Chico Toíca, dono de time e construtor. Trabalhava durante o dia nas obras, estudava à noite e jogava aos finais de semana. Chegou à seleção boaviagense de futebol, grande feito à época para um morador da zona rural, o que causou em alguns, inclusive em mim, uma certa inveja branca. – favor não interpretar o termo como racista!
Depois de anos na luta, Lurdécio conseguiu realizar seu sonho. Tornou-se um eminente professor, profissão que exerce até os tempos atuais. Também abracei a profissão e foi num corredor de escola, entre uma aula planejada e outra, que Maguila me mostrou, através de uma história tão hilária quanto sofrida, que nem só de glória foram seus tempos de atleta.
Nos anos 90, Ataliba, fotógrafo e desportista vindo de Itapipoca, abraçou a cidade de Boa Viagem e o futebol local. Com um certo trânsito no meio profissional, Ataliba conseguiu um amistoso com o Guarani de Sobral, relevante time da primeira divisão do futebol cearense que se preparava para a disputa de mais um certame estadual. Os melhores jogadores de BV seriam reunidos para enfrentar o “Bugre sobralense”, o que deixou a todos ansiosos por uma convocação. Para a felicidade de Maguila, seu nome apareceu na lista dos eleitos. Foi procurado por Ataliba logo cedo e avisado que partiriam no dia seguinte, às cincos da manhã, visto que o jogo seria às quatro da tarde.

Imagem do Maguila na seleção de Boa Viagem na década de 1990.

Naquele dia, embora extasiado pela notícia, trabalhou normalmente – de sete da manhã às cinco da tarde – e, à noite, lá estava ele na sala de aula, entre leituras, cálculos e cochilos. Exausto, chegou em casa por volta das dez e foi direto pra cama, a fim de descansar o máximo possível para o grande jogo do dia seguinte. Dormia o sonho dos anjos, quando foi despertado por uma batida “demoníaca” na porta. Era Ataliba, e o relógio, inacreditavelmente, marcava onze horas. Os planos tinham sido mudados e o ônibus partiria imediatamente.
Cambaleante, Maguila se deslocou até a rodoviária, onde aos poucos os seus colegas de time foram se agrupando para a viagem. Ataliba, numa velha moto, fazia viagens seguidas em busca dos jogadores e já passava da meia noite quando conseguiu juntar o elenco maldizente. Todos eram trabalhadores comuns e, àquela hora, estavam completamente vencidos pelo sono e cansaço. O ônibus não chegava e deu uma hora da manhã. Uma e meia, e nada. Finalmente, por volta de duas horas, chegou o que chamavam de ônibus: uma espécie de composto de retalhos de aço sobre rodas caindo aos pedaços, para vencer a distância de quase quilômetros que separavam Boa Viagem de Sobral.
A esperança dos passageiros era descansar durante a longa viagem. As poltronas não eram nem de longe o que pudesse se chamar de confortáveis, mas, na situação em que se encontravam, dormiriam até de pé. Mera utopia! Os inúmeros buracos da BR- 020 faziam chacoalhar aquela bateria ambulante sem proporcionar a menor chance de um cochilo.
Cada metro do percurso parecia uma eternidade, até que, 35 km e uma hora depois, chegaram a cidade de Madalena. O motorista parou o veículo e chamou pelo cobrador a fim de recolher passagens. Gritou uma vez, e outra e mais outra, e nada! Como não obteve resposta, o condutor foi até o fundo do ônibus, se dirigindo à ultima poltrona, onde viajava o colega de trabalho. O ocupante do assento estava enrolado dos pés a cabeça com um velho cobertor. O homem chamou o cobrador pelo nome, mas não ouviu resposta. Já sem paciência, arrancou de uma só vez o lençol e, para sua completa surpresa, Dô, o lateral do time, foi quem surgiu na sua frente. O cobrador tinha sido esquecido em Boa Viagem. A notícia foi chocante e desesperadora: teriam que voltar para buscar o funcionário da empresa deixado para trás.
Chegando a Boa Viagem, o cobrador não se encontrava mais na rodoviária. Então, pela madrugada afora, o ônibus rodava a cidade atrás do homem. Procuraram pelas ruas principais, já desertas àquela hora. Porém, a busca foi em vão. Não restava outra opção para o motorista a não ser seguir viagem sem o companheiro. No entanto, quando já saíam da cidade, perceberam alguém gritando e correndo atrás do ônibus: era o cobrador. Pegaram a estrada, finalmente!
Depois de sete longas horas de viagem, chegaram a Sobral. O alivio só não era maior do que a fome e o cansaço. De qualquer forma, esperavam que ali acabasse aquele sofrimento. Teriam, com certeza, uma recepção calorosa por parte dos dirigentes do time sobralense. Luís Torquato, o folclórico “Mosquito da dengue”, presidente do Guarani, certamente estaria à espera do visitante boaviagense. Mais uma decepção. Na rodoviária, nem a sombra de um vivente.
Por sorte, Ataliba conhecia a cidade e não teve dúvidas, rumou, junto com sua “tropa quase derrotada, para o endereço de Torquato. Chegando à casa do homem, foi recebido pela esposa deste, que disse simplesmente que Luís, como sempre, deveria estar em alguma casa de jogo.
Pelas ruas de Sobral, em tarefa semelhante a de um agente de endemias, o grupo perambulava em busca do “Mosquito da Dengue”. Depois de algum tempo, finalmente, encontraram o Torquato em meio a um jogo de baralho com amigos. O dirigente, boa praça que era, recebeu o grupo com presteza. Pediu mil desculpas pelos transtornos e, ávido por continuar o carteado, chamou imediatamente uma Van que conduziria a delegação visitante para um local de descanso e concentração para a partida de logo mais. Por um momento, brotou um pouco de alegria nos rostos cansados dos jogadores e treinador.
Em questão de minutos, a Van chegou e levou o grupo até o local indicado por Torquato. Para mais espanto da equipe, era uma revendedora de automóveis e caminhões. O proprietário os conduziu até um espaço nos fundos da loja, onde não havia camas, redes, poltronas, ou qualquer espécie de utensílio que pudessem lhes proporcionar a chance de tirar sequer um cochilo. Deitaram ali mesmo no chão, usando as mochilas como travesseiro. Porém, de minuto em minuto, chegava um cliente e ligava o motor de um veículo para testá-lo, não permitindo qualquer espécie de descanso. Já passava do meio dia e o barulho dos motores se misturavam à roncaria do estômago de cada um, que haviam comido no dia anterior e, a essa altura, quase deliravam de fome. Por volta das catorze horas – duas horas antes do jogo – alguém trouxe algumas marmitas. Não era o que se pudesse chamar de uma comida de qualidade: um simples feijão com arroz e um bife emborrachado que, para ser rasgado, às vezes precisava da ajuda de outro colega. Essa questão era secundária. Com a fome que estavam, comeriam o próprio recipiente de papel alumínio.
Lá pelas quinze horas, a Van conduziu a delegação para o velho estádio do Junco. Chovia bastante, então, se dirigiram direto ao vestiário. Não dera nem tempo de apreciar o gramado verdinho do campo, realidade distante do terrões de Boa Viagem, à época. Ataliba, que estudara o adversário, começou a preleção expondo suas fragilidades. Por outro lado, mesmo convivendo diariamente com os atletas de Boa Viagem, naquele momento, não conseguia enxergar neles um ponto forte sequer. Para concluir a “motivacional”, o treinador, que era evangélico, puxou uma oração, durante a qual os jogadores permaneceram em silêncio total e de olhos fechados. “Concentração total” – pensou o professor. Mero engano. Na hora do “Amém”, nenhuma resposta de seus comandados e a constatação de que estavam, na verdade, era dormindo.
De mãos dadas, adentraram ao campo, não para demonstrar unidade, mas para segurarem uns aos outros, visto que o campo estava completamente alagado e escorregadio e suas chuteiras, lisas e de travas de borrachas, não lhes permitiam o equilíbrio suficiente para ficar de pé.
Os profissionais do Guarani deitaram e rolaram em cima dos amadores e exaustos jogadores de Boa Viagem. 4×0 no primeiro tempo, fora o baile. No segundo, os atletas do Bugre desaceleram e fizeram apenas um gol. Talvez com dó, deixaram o time visitante fazer o gol de honra. Final do jogo: humilhante 5×1.
Do estádio, foram direto para a rodoviária. Esperavam comer um lanche antes de voltar a BV, porém, o treinador e o dinheiro da cota do jogo ficaram em Sobral, bem longe do embarque. Novamente famintos, tomaram o caminho de volta. Semivivos, chegaram em casa por volta das três da manhã.
Chegando à casa de Chico Toíca, Maguila mal tinha força para bater à porta. O amigo atendeu e ouviu do goleiro o lamento sobre a fome que lhe acometia naquele momento. Chico foi até a geladeira e colocou na mesa várias panelas. Saiu à procura de um fósforo pra esquentar a comida, mas quando voltou, Maguila já devorava um enorme prato de comida completamente gelada. A fome não esperou. Logo depois do jantar, completamente esgotado, apagou. Terminara, finalmente, aquela “Via Crucies”.
Dois dias depois, lá estava novamente Ataliba a bater à porta. Vinha avisar a Maguila que no final de semana teria jogo em Pedra Branca e que contava com a presença do goleiro. Este confirmou que lá estaria. Mentira, mas não sentia nenhum remorso por isso.
Domingo, dia do jogo, logo cedo, Ataliba foi à casa de Chico Toíca buscar o goleiro. Chico disse ao treinador que àquela hora, Maguila já devia estar em Boqueirão. Ataliba ficou desesperado. Com a ausência de Maguila, o time ficaria sem goleiro e disse a Chico que iria busca-lo. Porém, este disse que não lhe aconselhava a fazer isso, visto que o goleiro preferira pedalar 80km numa velha bicicleta, em uma viagem de ida e volta a Boqueirão, a ir para o dito jogo. Ataliba, finalmente, desistiu.
Claro que todos os sofrimentos pelos quais Maguila passou não diminuíram sua paixão pelo futebol. Continuou por muito tempo a peregrinação pelos campos da vida. Também teve muitos momentos felizes dentro do esporte. Os campos melhoraram, os transportes se aperfeiçoaram, o material de prática também evoluiu. Porém, mesmo depois de tanto tempo e hoje na condição de professor, é difícil lembrar de Sobral apenas como o melhor Ideb do Brasil.

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