A bandeira do divino

Ednardo Rodrigues Brasil

Durante grande parte da minha juventude, cultivei o hábito nada saudável de “beber cachaça”. Não era muito de frequentar bares – costumava beber em casa ou lugares isolados – e quando o fazia, curiosamente, preferia a companhia de parceiros mais velhos, talvez pelo fato destes bancarem a bebida, visto que eu estava constantemente “duro”.
Um de meus companheiros preferidos de pinga era o Edimilson André, a quem eu chamava, carinhosamente de “Carijó”. Edimilson era um sujeito, de certa forma, estranho. Seu humor variava com muita frequência. Em algumas ocasiões, era divertido ao extremo; noutras, chegava a ser insuportável. Mesmo assim, me dava muito bem com ele, e suas mudanças bruscas de comportamento já não me afetavam. Ele trabalhava com compra, venda e abate de animais e, como era semianalfabeto, muitas vezes eu o ajudava em sua contabilidade, o que fazia com que este tivesse por mim um certo carinho.
Carijó, levou por muito tempo uma espécie de “vida cigana”. Natural de Boqueirão, na nossa Boa Viagem, morou, dentre outros muitos lugares, por muito tempo, no Maranhão. Tudo indica que, nesse estado, passou por sérias dificuldades, vista a situação lastimável em que voltou para o Ceará. Felizmente, deu a volta por cima, passou a levar uma vida digna, além de ser bastante respeitado na comunidade.
Em nossos encontros para “molhar o bico”, adorava ouvi-lo sobre suas aventuras – e desventuras – no Estado vizinho. Contava sobre como funcionava a monocultura do arroz, sobre a caça de animais silvestres para complementar a dieta e, principalmente, sobre as festas locais.
Certa vez, me contou sobre um grande evento que anualmente realizava-se na região em que morava. As festividades do Divino Espírito Santo era ansiosamente esperada por todos. Para a sua realização a contento, contava-se com um longo tempo de preparação, tendo como um dos principais itens, a saída das bandeiras para as zonas rurais que tinha a finalidade de angariar donativos. Havia um período a cada ano, com uma longa maratona a se cumprir.
Segundo Carijó, as “Bandeiras” era uma espécie de tripulação, composta de um alferes – a pessoa que comandava o restante do grupo e responsável pelas receitas e despesas -, o folião com a viola que entoava músicas louvando o Divino e dois meninos; um com a caixa de percussão e outro com um triangulo. Fazia também parte da tripulação uma pessoa a quem chamavam de camarada. A este era dado o trabalho de recolher as doações e fazer o transporte até a residência do festeiro.
Os produtos arrecadados iam para a mesa dos leilões no dia das festas; outros eram vendidos no comercio local, cuja renda era revertida para a manutenção da paroquia. Os grupos que formavam as bandeiras cumpriam uma maratona de aproximadamente quarenta e cinco dias e, ao retornaram à cidade, eram recebidos pela comunidade, com muita festa.
Certo ano, em uma dessas bandeiras, ingressaram meu amigo Edimilson, seu primo e conterrâneo Zé Leitor e outros parceiros de gosto em comum: a cachaça. O propósito desse grupo, mesmo usando a imagem do Divino, não era nada nobre. Desocupados que eram, à época, traçaram o plano de montar a equipe sem nenhum intuito de colaborar com a festa religiosa, mas, para de forma herética, angariar fundos para se esbaldarem na bebedeira. Assim sendo, era muito comum receber donativos em uma comunidade e, vende-los no povoado mais próximo para comprar pinga.
Segundo o próprio Carijó me confessou, os “devotos” daquela bandeira não parecia, à primeira vista, pessoas confiáveis. Para tentar dissipar um pouco essa imagem, tiveram uma ideia bem original. Iriam confeccionar uma imagem do Divino Espírito Santo, em forma de pomba, para tentar melhorar o julgamento das pessoas. Entre eles, havia um rapaz que era exímio artesão, especialmente usando madeira como matéria-prima. Porém, o trabalho seria demorado. Sob pressão do grupo, o artesão teve que improvisar e usou mandioca, material bem mais maleável para construir o Divino.
Terminado o caprichoso e detalhado trabalho, amarraram a escultura no lombo de um jegue, que era conduzido por um dos meninos da bandeira, e continuaram no trajeto. O plano foi exitoso. Com a companhia do “Divino”, os donativos aumentaram e, consequentemente, o consumo de álcool.
Certo dia, já à tardinha, o grupo entrou em uma birosca para gastar com a cachaça a arrecadação do dia. Enquanto “batizavam o santo”, ouviu-se o choro desesperado do menino, que entrou correndo no bar. Assustados, os beberrões sacudiram a criança e perguntaram:
– O que aconteceu? Morreu alguém?
Soluçando e trêmulo, com dificuldades, o garoto respondeu:
– O jumento comeu o Divino!

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