Ednardo Rodrigues Brasil
As mudanças culturais e comportamentais de nosso povo foram se modificando ao longo das décadas. Por exemplo, o crime de defloramento já esteve contido no Código Penal. O artigo 267 era definido como o ato de “deflorar uma mulher de menor idade, empregando sedução, engano ou fraude”. Na época, era menor de idade quem tivesse até 21 anos. Para o crime em questão, a pena era de um a quatro anos de reclusão ao deflorador. O artigo vigorou de 1890 até 1940, quando houve mudança no código penal brasileiro.
Moças, geralmente ao lado da mãe, acusavam homens de desvirginá-las sob a promessa de casamento. A mulher passava por um exame médico para comprovar o ato sexual e o rompimento do hímen. Em seguida, o homem era chamado para depor. A maioria absoluta dos processos terminava com a comprovação do crime e com o acusado se disponibilizando a casar com a moça denunciante. Raras vezes, o homem se recusava ao matrimônio e cumpria a pena de reclusão.
Algumas famílias de jovens mulheres sertanejas ignoravam a Justiça e resolviam diretamente com o infrator, geralmente, o namorado. Davam duas opções ao sujeito: o casamento ou a morte. Prevalecia, sob via de regra, a primeira opção. Foi nesse contexto que, nas primeiras décadas do século passado, Francisco, conhecido popularmente como Pompeu, desposou minha tia avó, Conceição. Ele, um sujeito vaidoso e boêmio; ela, moça simples e tímida.
O casamento rendeu mais de uma dezena de filhos, exigindo grande esforço do casal para garantir a subsistência da família. Mesmo assim, Pompeu, homem controlado e pouco gastador, sempre carregava consigo algum dinheiro. Era comum vê-lo em eventos, sempre montando seu bem cuidado cavalo e vestindo seu terno de linho branco. Raro, porém, era ver Pompeu enfiar a mão no bolso para gastar algo.
Nessa época, o principal evento anual da região era as chamadas “Missões Católicas”, na Fazenda Belmonte. Por semanas, padres, frades, freiras, e outros religiosos permaneciam naquele local, atraindo os fiéis de todos os lugares próximos. Pompeu, claro, era presença garantida. O povo participava de missas, novenas, procissões e se esbaldava nas barracas, onde eram vendidos os mais diversos quitutes.
Em uma ou outra ocasião, durante as festividades de Belmonte, o homem levava seu filhos homens para as novenas noturnas. Os moleques vibravam de satisfação. Arrumavam-se cedo e ao se aproximar a hora de sair, recebiam as instruções do pai:
– Olhem, meninos! Tem aí uma panela de mungunzá, então, “encham bem o bucho pra não tá lá aperreando por comida”. E continuava: – “quando nós tiver lá, vou levar vocês nas barracas e perguntar: negrada, querem alguma coisa… E vocês vão responder: não, pai, nós tamo com o bucho cheio. Entenderam? “E concluía, em tom de ameaça: – Aquele que disser que quer, quando chegar em casa leva uma surra!
Depois da janta e das recomendações, Pompeu montava seu cavalo, e os meninos, a pé, o seguiam. Era uma caminhada de uns dois quilômetros até Belmonte, que passava quase despercebida, diante da alegria dos garotos em poder vivenciar aquele momento tão raro em suas vidas.
Quando lá chegavam, Pompeu assistia, em postura de reverencia, à Santa Missa, celebrada ao ar livre, enquanto a molecada mal percebia o contexto religioso do evento. Seus olhos só conseguiam enxergar a diversidade de guloseimas espalhadas pelas barracas. Era bolo de vários sabores, tapioca, refresco, pães doces… Coisas que, além daquele momento, só vislumbravam em sonhos. Para eles, o sofrimento de Cristo, exaltado pelo padre no sermão, era nada diante da tortura de ter que “comer com os olhos” aquelas delícias que, colocadas à venda, eram para eles algo inalcançável.
Encerrado o ritual religioso, as pessoas circulam freneticamente entre as tendas de comidas. Pompeu junta os meninos e começa a pôr em prática o plano de se mostrar bom pai e desprendido do dinheiro. Aproximam-se da barraca de doces e inicia a encenação, previamente combinada em casa:
– Pedro, tu quer bolo?
– Não, pai! Tô com o bucho cheio.
– Miguel, tu quer bolo?
– Não, pai! Tô com bucho cheio.
Assim, um a um, o pai foi chamado os filhos que, conforme ensaiado, rejeitavam a oferta, muito embora a boca e os olhos úmidos confessassem o contrário. Chamou Valter, Francisco Filho, Valdir, até chegar a vez de Antonio ser perguntando:
– Tonho, quer bolo?
Sem vacilar, o menino respondeu:
– Eu quero, pai! Tô morrendo de fome!
Pompeu perdeu a cor. Os rapazes, incrédulos, olhavam para o irmão. Com certeza, enlouquecera. Desobedecer ao pai era um ato suicida. Mas, não tinha mais jeito. O vendedor entregou o pedaço de bolo ao menino que, como se não houvesse amanhã, o devorou em segundos. Os irmãos sequer conseguiam inveja-lo, sabendo do que aconteceria no regresso a casa. Pompeu, com as mãos trêmulas e praticamente grudadas ao dinheiro, finalmente, tirou uma nota de pequeno valor e pagou ao vendedor.
O retorno foi tenso e silencioso. O pai era homem de uma palavra só e não recuaria da punição. E foi o que aconteceu, logo na chegada à residência da família. Apesar dos pedidos de clemência de Tia Ceiça, Pompeu foi irredutível. Deu várias chicotadas no “espinhaço” de Antonio e deixou o seu recado, diante da desobediência.
As redes já estavam armadas. Deitaram-se, imediatamente e caíram no sono. Os irmãos, sonhando com o delicioso bolo; Antonio, de lombo ardendo, mas, saciado.
O tempo passou; Pompeu e Tia Ceiça se foram. Depois de várias décadas, Antonio continua o mesmo. Não resiste a uma oferta de qualquer guloseima. Frequenta todos os eventos e, segundo o próprio, prefere comparecer, justamente, àqueles para os quais não foi convidado.
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