Ednardo Rodrigues Brasil
Eu ainda era criança quando conheci Otávio Saturno. Este morava em uma das extremidades da Fazenda Boqueirão, propriedade de meus bisavós maternos, numa casa de pau a pique, também conhecido como “taipa de mão”, uma técnica construtiva antiga que consiste no entrelaçamento de madeiras verticais fixadas no solo, com vigas horizontais, geralmente de varas de Marmeleiro, amarradas entre cipós, dando origem a um grande painel perfurado que, após ter os vãos preenchidos com barro, transforma-se em parede. Nessa humilde residência, também moravam sua esposa, Altina, e seus dois filhos.
Embora tivesse algumas outras ocupações, a paixão de Otávio era mesmo os animais, principalmente os de montaria. Jegues, burros, cavalos eram imprescindíveis à vida do homem. Apesar disso, era um negociante nato e não hesitava em trocar, constantemente, seus animais.
A aparência de Otávio era meio estranha: não tinha unhas nem sobrancelhas, além disso, na cabeça poucos fios de cabelo. De forma irônica, ganhou o apelido de Roberto Carlos, referência ao Rei da música, que exibia uma vasta cabeleira. Se alguém quisesse arrumar uma contenda com Otávio era só chama-lo por essa alcunha. Ele ia às vias de fato.
De troca em troca, Saturno ia levando a vida. Um dia, adquiriu em uma de suas negociações, um cavalo branco. O animal não parecia bem cuidado, mas era grande e forte. O proprietário rasgava elogios escancarados a sua nova aquisição, porém, alguns entendidos no assunto de equinos questionavam-se sobre um ponto muito importante: a idade do animal. Otávio não se importava com a intriga da oposição e continuava a propagar as qualidades de seu corcel branco.
Numa tarde de domingo, várias pessoas estavam sentadas na calçada da bodega de meu pai. Aquele lugar sempre era ocupado por amigos, fregueses e, principalmente, desocupados que, em sua maioria, vinham com um único propósito: falar da vida alheia. Eis que surge Otávio, todo pomposo, montado em seu cavalo branco. Sem apear, cumprimentou os presentes, olhando-os com um certo ar de superioridade, com certeza, por achar que era motivo de inveja de todos, afinal, naquele momento se achava o próprio Zorro e seu cavalo Phanton, também branco.
Meu pai nunca foi adepto de cavalos, mas não perdia a oportunidade de provocar Otávio. Perguntava se o homem vendia o cavalo, apenas com o intuito de vê-lo gabar-se do animal e pedir um preço totalmente fora da realidade. Naquele dia, não foi diferente:
– Seu Otávio, o cavalinho é pra vender?
– É sim, “cumpade” Chico – respondeu o homem. E acrescentou: – Tem uma coisa: o bicho é bom e é bem “novim”! Ainda tem uma muda! (Nunca fui especialista em cavalos, mas aprendi que, durante a vida do equino, ocorrem mudanças na sua dentição divididas em sete fases, em que são considerados os dentes incisivos, para a avaliação da idade do animal).
Meu avô, França Rodrigues, figura extremamente irônica e sarcástica, apesar de respeitada, era um dos presentes na calçada. Embora fosse grande conhecedor de cavalos, manteve-se calado durante a conversa entre meu pai e o negociante. Sabendo dos conhecimentos de meu avô, Otávio não hesitou em chama-lo para analisar a dentição do animal e comprovar a sua pouca idade:
– “Cumpade” França – disse em tom de desafio – olhe aqui os dentes desse cavalo e diga se ele não tem ainda uma muda!
Vovô, que já conhecia o animal, praticamente fingiu olhar a dentição e deu o veredito:
– Sim, compadre Otávio. Ele ainda tem uma muda. Desse mundo pro outro.
A “geral” da calçada caiu na gargalhada. Otávio ficou mais vermelho do que pimentão. Xingou baixinho meu avô, cravou as esporas no pobre animal, que mal conseguia dar um trote, e desapareceu na estrada.
Pingback: CRÔNICAS E POESIAS | História de Boa Viagem