O delegado e o papa

Ednardo Rodrigues Brasil

Quando nasci, meu pai já era um pequeno comerciante. Por décadas, ele teve na minha comunidade o que chamavam de bodega, uma mescla de mercearia com bar. Nesse período, acompanhei muitas histórias contadas pelos seus fregueses, ou mesmo por aqueles que frequentavam o recinto apenas para jogar conversa fora e compartilhar boatos sobre a vida alheia. Ao pé do grande balcão de cimento ou espalhados pelos tamboretes de pernas de madeira e assentos de couro, os presentes se esbaldavam com as resenhas.
Um dos frequentadores assíduos da bodega de meu pai era Crisolídeo, nome tão estranho quanto o seu detentor. Era um homem negro, de meia idade, morador da vizinha comunidade de Lagoa do Senador, que vinha ao comércio fazer suas compras semanais e, sobretudo, tomar doses generosas de cachaça. Crisolídeo, como todos os moradores da região, vivia de roça, mas era conhecido por ser um exímio caçador. Em sua casa, nunca faltava iguarias, como preá, teiú, nambú, tatu, dentre outros, para acompanhar o prato tradicional: feijão com farinha. Não faltava, também, a garrafa de cachaça no pé do pote, degustada diariamente, muitas vezes de forma exagerada, pelo homem.
Lembro que, em meados de 1978, o assunto recorrente na bodega de meu pai era a morte de dois papas no mesmo ano. Paulo VI morrera em 6 de agosto e seu sucessor, João Paulo I, em 28 de setembro. Numa comunidade majoritariamente católica, aquilo causou grande comoção. Dois homens de Deus morreram num espaço tão curto de tempo era inexplicável.

Voltando a falar de Crisolídeo, meses antes, ele chegara à bodega com uma grande novidade. Cheio de orgulho, contou que havia chegado à vizinha cidade de Madalena um novo delegado e que este, grande amante de caçadas, teria se tornado seu amigo. Disse que o homem da lei era presença constante em sua casa. O anfitrião armava para seu hóspede policial a melhor rede e matava para o amigo sempre a galinha mais gorda do chiqueiro. Nada mais merecido, afinal, era uma autoridade e deveria ser tratada como tal. À noite, saíam para a caçada.
Passou-se algum tempo e soubemos que Crisolídeo teria ido à cidade de Madalena fazer algumas compras. Por lá, parece que exagerou na bebida e, bêbado, assediou uma moça que passava em frente ao bar. Foi denunciado pela jovem e, não deu outra, foi conduzido à delegacia, onde foi preso. Dormiu na cadeia e, passado o porre, foi liberado. Porém, ficou inconformado, afinal, era um trabalhador e a ação da polícia não se justificava.
Sabendo do ocorrido, meu pai e os frequentadores de nossa casa aguardavam, ansiosamente, a vinda de Crisolídeo ao estabelecimento para fazer a tradicional “mangofa” sobre sua amizade com o delegado.
Domingo de manhã. Calçada da bodega apinhada de gente. Em cima do balcão, garrafas e copos de cachaça animavam aquela gente. Eis que surge no terreiro Crisolídeo. Sem sinais de abatimento, cumprimentou os presentes na calçada e se dirigiu ao interior da bodega.
Meu pai o recebeu com a alegria e a deferência de costume e se colocou à disposição do freguês:
– O que você manda, compadre Crisolídeo?
– “Me dê uma dose de água que passariam num bebe, cumpade Chico! ”
Enquanto meu pai enchia de cachaça o copo do homem, as pessoas que estavam na calçada lotaram o interior da bodega, como se já fora combinado a “tiração de sarro” do homem. Meu pai, igualmente mal intencionado, não perdeu tempo:
– Compadre Crisolídeo, como estão as coisas?
– “Do jeito que Deus permite, cumpade Chico!”
Meu pai continuou:
– Compadre Crisolídeo, me contaram uma coisa que eu me neguei a acreditar. Disseram que o amigo foi preso em Madalena, justamente, o lugar do seu amigo delegado. É verdade essa história?
– “É sim, cumpade Chico! – disse, o arguido – A puliça me prendeu e aquele cabra num fez nada”.
– E o amigo não disse nada com ele? – Indagou meu pai, admirado.
– Não, cumpade Chico. Eu só desejei que ele fosse um Papa.
– Um Papa? – disse meu pai, sem nada entender – Como o compadre deseja que um cabra covarde seja um Papa, que é um homem santo? Você desejou mesmo isso?
– “Sim, cumpade Chico. Ultimamente, todo mês morre um, né?”

Enquanto todos rolavam de rir, Crisolídeo, sem expressar nenhuma reação, tranquilamente, tomou a sua “lapada de cana” e cuspiu no pé do balcão.

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