Ednardo Rodrigues Brasil
A Fazenda Lagoa do Senador, com suas terras brancas, ariscadas, sempre produziu bastante feijão, milho e, principalmente, mandioca. As chamadas farinhadas aconteciam, praticamente, durante todo o ano. Os proprietários da terra, a Família Severo, também sempre foram adeptos da criação de bovinos, ovinos e caprinos.
Para cuidar de todo esse serviço, era necessário fazer parcerias com famílias que não tinham residência própria. O patrão oferecia moradia, uma pequena roça para sustento dessa família e, em troca, o morador se comprometia a trabalhar para o proprietário alguns dias da semana, num acordo pré-determinado.
Um desses trabalhadores que entrou em parceria na Fazenda Lagoa do Senador foi o “Seu Zé Chagas”, se tinha outro sobrenome não é de meu conhecimento. Seu Zé já beirava a terceira idade, porém, era um caboclo forte e sempre disposto a encarar qualquer espécie de serviço. Era morador de um dos herdeiros da terra, o Sr. Raimundo Luís. Fazia de tudo: capinava, cuidava de gado e era um exímio construtor de cercas. Não tinha mulher nem filhos e vivia numa pequena casa nos fundos da terra.
Nas raras folgas, Seu Zé Chagas gostava de visitar meu avô, França. A casa deste vivia sempre repleta de netos, talvez atraídos pelos agrados de vó Luísa, uma das figuras mais humanas que já conheci. Era impossível alguém sair de lá sem antes comer um pedaço de rapadura, um prato de leite com farinha, uma goiaba, uma manga, ofertados, gentilmente por aquela criatura abençoada. Porém, quando Zé Chagas chegava, aquela casa se esvaziava rapidamente. Os meninos, simplesmente, tinham pavor daquele homem que, propositalmente, revirava as pálpebras, expondo um vermelho junto aos olhos que nos deixava apavorados. Em contrapartida, ele e meu avô se divertiam bastante com nosso medo infantil.
Sentados no grande alpendre, meu avô e Zé Chagas falavam de coisas rotineiras, como inverno, plantação, colheita, gado, farinhada, essas coisas comuns ao sertanejo. O visitante contava muita vantagem sobre o lugar em que morava e exaltava, em especial, o Sr. Raimundo Luís. Era patrão pra ninguém botar defeito. Correto, pagador e pronto a socorrer o morador em qualquer espécie de dificuldade. Arrematava, dizendo que, de todas as terras em que morara, aquela era o verdadeiro paraíso. Calado, Seu França fingia concordar com tudo que o visitante mencionava. Geralmente, Zé Chagas esperava pelo almoço e voltava, logo depois, para sua Canaã.
Certo domingo, estávamos, juntos a meu avô, sentados no alpendre de sua casa, quando, ao longe, percebemos uma figura negra, carregando o que parecia ser um saco, nas costas, se aproximando. Aquela silhueta logo foi se definindo à medida em que se aproximava e, em segundos, não tínhamos mais dúvidas: era Zé Chagas. Ao reconhecer o “homem de olhos virados”, a molecada se espalhou, mais rápido do que um raio, deixando meu avô acompanhado, apenas, de alguns adultos. Nos escondemos na cozinha, na despensa, na camarinha.
De onde eu estava escondido, dava pra escutar a conversa dos homens. Ouvi, claramente, quando Zé Chagas disse:
– “Bom dia, cumpade França!”
– Bom dia, compadre Zé Chagas! – respondeu vovô. Vamos chegar perto!
– Não, amigo! – respondeu o homem, cabisbaixo, visivelmente nervoso e sem tirar das costas o velho saco. – “Passei aqui só pru mode me despedir do meu cumpade. Tô indo mimbora’.
– Embora? – falou Seu França, perplexo – O amigo gosta tanto da Lagoa e do Seu Raimundo Luís!
O homem interrompeu, bruscamente, meu avô e disse em tom de revolta:
– “Pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, cumpade França, não me fale desse homi!
– Mas, até outro dia, o amigo botava o homem do Céu pra cima! – tentou argumentar meu avô – O que aconteceu?
– “Cumpade França, nesses últimos tempo, eu fiz cerca, capinei, cuidei de gado, plantei capim – começou a explicar o homem – e, hoje, precisei de um dinheirinho e fui lá prestar conta no fornecimento, pensando em ter um saldim bom. Seu Raimundo pegou um caderno e um lápis e começou: “noves fora, noves dentro, noves fora, noves dentro, noves fora, noves dentro…” No fim, ele ficou do lado de dentro e eu do lado de fora. Ainda fiquei deveno. Nunca mais trabaio paquele ladrão!”
Sem, ao menos, esperar pela opinião de meu avô, despediu-se e sumiu pela estrada afora. Nunca mais voltou.
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