O Capitão José Rangel de Araújo, de Boa Viagem, ex-prefeito de sua cidade, era, ao mesmo tempo que um comerciante conceituado, fazendeiro rico e comprador de gado para as feiras de Parangaba, em Fortaleza.
Era casado com Luzia Oliveira, senhora muito laboriosa, que por sinal pensava em melhorar sempre a aparência de sua residência, conservando principalmente a ampla sala de visitas bem arrumada, em perfeita ordem.
Acontecia porém que o esposo não ajudava. Dizia ele: – “Não tenho tempo para perder com essas futilidades, que não enchem barriga”
Nesse austero tempo era obrigatório nas casas conservarem-se duas bonitas escarradeiras na sala de visitas, quase sempre de louça fina ricamente floradas em alto relevo e adornadas de pontos e finas linhas cor de ouro e prata, que serviam também como cinzeiros para os fumantes.
Aos domingos e dias santos, de maior movimentação no comércio, Rangel só fechava o estabelecimento na hora que a “cachorra” batia (ao meio dia), quando então voltava ao lar, nunca desacompanhado de um ou dois amigos.
A barra de ferro (cachorra) da Prefeitura dava ordem para iniciar e terminar as atividades comerciais do dia. A marreta batia na peça de ferro com muita força, às 6, 12 e 18 horas.
No sertão era sempre assim, um convidado tinha o direito de convidar outro para o almoço, fosse amigo ou desconhecido do anfitrião. Almoçavam com toda liberdade e em seguida tomavam a direção da saleta contigua à grande sala, onde discutiam e ultimavam negócios. O café era servido exageradamente, da mesma forma que usavam o fumo!
Dessa vez Rangel, displicentemente, foi sentar-se na sala de visitas, sem atinar o impacto que seu gesto causaria à esposa zelosa. Luzia, enciumada, ficou ao lado de Rangel, que tomando formidável pitada de rapé, limitou-se a contrair os lábios em um riso forçado.
Um dado momento um dos marchantes, gordo como um cevado, tirou o canivete do bolso e a tora de fumo, cortou o tabaco bem miudinho, esfregou entre as palmas das mãos e atulhou o cachimbo barato para ir riscar o fósforo detrás da porta, devido ao vento que soprava forte, a anfitriã foi até ao local da poltrona e passou um pano no piso juntando os fragmentos de fumo, colocou-os no local exato, na escarradeira.
O comilão sentou-se, olhou demoradamente para a cuspideira e soltou gostosas baforadas. Logo o ambiente foi tomado pelas sucessivas fumegadas do velho e mal educado cachimbeiro. Tirou o cachimbo da boca. Botou novamente a ponteira entre os dentes. Soprou a fumaça do pito que foi se alargando, adelgaçando até desaparecer e ser substituída por outra.
Pobre homem que vivia vegetando, correndo pela vida como um regato em seu próprio leito. O diálogo foi interrompido. O boiadeiro empurrou a escarradeira com o pé e cuspiu no piso.
Luzia prontamente levantou-se, enxugou o piso com um pano e colocou a escarradeira em cima da mancha do cuspe.
O matuto avisou: – Olhe sinhá Luzia, tire a sua tigelinha de perto do meu pé, senão eu cuspo dentro.
Respondeu ela: – Mas é isso mesmo compadre, pode cuspir aqui dentro, e indicou com o dedo.
Daí ele retrucou: – Que porcaria comadre, cuspir ai dentro de sua tigelinha!
Luzia levantou-se e, olhando para o Rangel, que estava rindo e tomando nova pitada de torrado, disse: – Vê lá Rangel, vocês não têm jeito não; o pau que nasce torto, tarde ou nunca endireita. E a muxoxear, saiu para casa de sua cunhada, Emilia Carvalho.
Os negócios se prolongaram ate o lusco-fusco, quando ainda absorta, Luzia voltou para casa.
O salão nunca mais foi cuspido… a chave na porta resolveu o problema. Uma questão de bom senso, para não questionar com o marido. E agora nada mais existe!
BIBLIOGRAFIA:
- BARROS LEAL, Antenor Gomes de. Avivando Retalhos – Miscelânea. 2ª edição. Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, p. 186-187.
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