Ednardo Rodrigues Brasil
A ideia que temos de família hoje não é a mesma de tempos atrás, vez que estamos em um momento de transformação social, onde o conceito do que vem a ser família vem sendo ampliado.
Antigamente, o modelo familiar predominante era, dentre outras coisas, o patriarcal, na qual, a figura do “chefe de família”, era o líder, o centro do grupo familiar, provedor deste e suas decisões deveriam ser seguidas por todos.
A obediência aos pais era indiscutível e, acima de tudo, considerada sagrada. A ideia de descumprir essas ordens não era, sequer, considerada pelos filhos. Se essa regra de ouro fosse quebrada, a punição era certa e dolorosa. A vara da correção, literalmente, entrava em ação.
Nesse contexto, eram criados os filhos de Manoel Verão, morador, desde os anos 1960, do lugar chamado Pereiros, extensão da Fazenda Boa Ventura, ao pé da Serra do Boqueirão. Como era comum à época, a família de Seu Manoel era bastante numerosa e, nesse caso específico, em maior parte, constituída de membros do sexo masculino.
Com essa leva de homens em casa, Manoel Verão, que era agricultor, cultivava grandes porções de terra, visto que a mão de obra caseira era suficiente para a semeadura. Todo os dias, logo cedo, a “tropa” rumava para o roçado com suas enxadas às costas. Alguns, ainda sonolentos, resmungavam, reclamando da sorte, mas quase sussurrando para que Seu Manoel não ouvisse.
Talvez pela falta de escolas naquele tempo e a ausência de estimulo para aprender, principalmente para os homens, que eram, desde cedo, adestrados para a roça e tinham impregnada na mente a ideia de que estudar era coisa de quem não queria trabalhar, “os Verão” eram todos analfabetos. Eram conhecidos, também, com certeza, pela falta de estudo, pela linguagem peculiar, marcada por uma espécie de “paradoxo blasfemo”, porém, inocente. Eram comuns entre eles, frases do tipo: Ô infeliz de sorte!”; “Ô satanás bom de bola!”; “Ô amaldiçoado pra trabalhar!”
Num sábado como outro qualquer, lá se foi a “tropa” para mais um dia de “limpa de mato”. Chegando ao terreno, vendo que o serviço não era tanto, Seu Manoel propôs:
– “Negrada, falta poucas carreira de mato para terminar a limpa. Então, vamo combinar assim: vumbora trabalhar com vontade e, na hora que terminar o mato, nós vamo “simbora”.
Os filhos de Manoel Verão vibraram. Certamente, o velho tinha se perdido na empreita. Não levariam mais do que duas ou três horas para concluir o serviço, pensaram. E assim foi. Por volta de nove horas, “cruzaram a linha final” do roçado. Agora, era só “partir pro abraço”.
Quando os jovens já tiravam o barro da enxada para partirem, Seu Manoel tirou o chapéu, ergueu os olhos rumo ao céu, observou a “altura” do Sol – pela qual se baseava sobre a hora – e proferiu a terrível e inesperada frase:
– Negrada, tá muito cedo! Vamos tirar outra “pontinha de mato” ali no outro roçado.
A reação dos homens foi de incredulidade. Deram tudo de si, suaram a camisa, quase se matam para ir embora cedo e o pai faz isso com eles. Não era justo. Era unânime o pensamento de gritar que não iriam mais trabalhar naquele dia, afinal, trato é trato. Mas, quem ousaria?
Cosme era o mais revoltado e inconsolável. Quando, na vereda que levava a outra roça, o velho Manoel se distanciou o bastante, desabafou com o irmão gêmeo, Damião:
– Macho, como é que o pai faz isso? “Cabra véi” sem palavra!
Damião não acreditou no que acabara de ouvir e, num tom de indignação e disciplinador, exclamou:
– Cosme, diga isso com o pai não, rapaz! Pai é o Cão!
Cosme calou-se e saiu chutando as pedras pelo caminho.
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