Ednardo Rodrigues Brasil
A cantoria, também conhecida como repente, é uma arte poética e musical comum no Nordeste brasileiro. Seus poetas são chamados de cantadores, repentistas ou violeiros, e atuam sempre em duplas, alternando-se no canto de estrofes compostas sob regras bastante rígidas de rima, métrica e coerência temática. Sua característica fundamental é o improviso, ou seja, a criação dos versos no momento da apresentação. A capacidade de sustentar o dialogo poético em apresentações que podem durar horas, respondendo às estrofes do parceiro e a pedidos dos ouvintes, é o aspecto mais encantador dessa arte.
O enfretamento entre poetas é desenvolvido a partir de um mote ou de uma modalidade, geralmente definida a pedido da plateia. O mote é o tema pelo qual o poeta se norteará para criar seus versos, que poderá ser palavra ou expressão para delimitar o assunto a ser tratado, bem como na forma de verso a ser repetido pelo cantador ao final de cada estrofe. Com o auxílio da viola e instigados pela vibração da plateia, os cantadores criam seus versos no calor do momento sobre os mais diversos temas, elevando seus dotes como poeta e tentando convencer a todos de ser o melhor nessa arte.
Grandes repentistas se destacaram nesse estilo e ficaram conhecidos em todo o país, como Valdir Teles, João Paraibano, Moacir Laurentino, Sebastião da Silva, Geraldo Amâncio, Zé Cardoso e outros.
Em meados do século passado, era comum que violeiros, principalmente da capital, com seus “pinhos” às costas, saíssem pelas cidades e Sertão em busca de apresentações. Eram figuras admiradas pelo povo e tinham quase o status de ídolo, dependendo de quão fossem conhecidas.
Certo dia, chegou à casa do velho Zé André, em Boqueirão, uma dessas figuras. De terno, e viola na mão, o cantador disse que vinha de Fortaleza em busca de novos palcos para apresentar sua arte. O dono da casa, amante fanático de cantoria, ficou em estado de êxtase, afinal não era todo dia que se hospedava em sua humilde residência um violeiro, e ainda por cima, da capital.
Já passava do meio dia, então, o anfitrião mandou que se preparasse um banho para o hóspede ilustre e que se matasse a melhor galinha do chiqueiro para providenciar seu jantar. Em pouco tempo, a casa estava cheia de curiosos a fim de conhecer o artista e saber se, à noite, haveria cantoria. Aproveitando-se do questionamento do povo ali presente, o dono da casa perguntou ao cantador:
– O sinhô vai fazer uma baião de viola pra nós, de noite?
O homem, de imediato, se prontificou a atender o pedido de Zé André, porém fez uma ressalva. Alegou que seu companheiro de dupla não pôde lhe acompanhar na viagem e que cantar sem parceiro diminuía a qualidade da apresentação. Assim sendo, perguntou se pela região haveria algum poeta que pudesse com ele fazer parceria.
Imediatamente, Zé André lembrou de Antonio Costa, vulgo Carapuça, único poeta – se é que podia ser assim classificado – daquela região. Carapuça, além de ter quase nenhum talento, era “analfabeto de pai e mãe” e, do Mundo, só conhecia aquele torrão quase esquecido. Mesmo assim, praticamente intimado pelo velho Zé, prontificou-se a comparecer ao embate com o cantador da capital. Talvez tenha imaginado, com razão, que sua atuação passaria despercebida, visto que o público iria prestigiar unicamente o artista “de fora”.
Nem bem escurecera e a casa de Zé André já estava lotada. Era gente pela calçada, no terreiro e pelos “aceiros”. Dona Guida, a dona da casa, com seu bule de águida à mão, servia um café, passado no pano, aos presentes. No centro da sala, três tamboretes de madeira com acento de couro seco: um para cada artista e o outro para servir de acomodação à bandeja, onde seriam depositadas as ofertas, em dinheiro, da plateia.
Não demorou muito, e lá estavam os dois poetas afinando suas violas. Tocavam uma espécie de introdução, comum em todas as cantorias, que demorava cerca de alguns minutos, a fim de trazer para mais próximo os admiradores daquela arte. Quando foi feito o círculo humano ao seu redor, os cantadores, em forma de repente, agradeceram o acolhimento do anfitrião e deram as boas-vindas aos convidados.
Depois disso, como era de costume, começaram os pedidos. De cara, alguém propôs um monte que dizia: “SÃO ESSES OS PEIXES QUE EU VEJO NO MAR”. O tema agradou por demais ao cantador da capital, afinal, o Litoral era seu habitat e isso lhe proporcionava facilidade em discorrer sobre o assunto solicitado. Na contramão disso, Carapuça ficou em estado de pânico, embora não deixasse transparecer. Mal conhecia meia dúzia de espécies de peixes que ele mesmo pescava ali no velho açude do Boqueirão. Nunca vira o mar, sequer por fotografia. Sua vontade, confessou mais tarde, era de abandonar a viola e sair dali correndo, mas estava completamente paralisado. Não tinha mais o que fazer, Era se agarrar com Deus e o improviso, apesar do pouco talento, para não sair dali humilhado.
O artista da capital, que durante toda a sua vida convivera com o mar, já se autodeclarava vencedor do embate. Com certeza, massacraria o seu oponente. Sem dificuldade alguma, não perder tempo e mandou a “Décima”:
TEM PEIXE LINGUADO
E O PEIXE ATUM
O PEIXE TARPON
E O NAMORADO
BAIACU DO LADO
PEIXE MARIMBÁ
TEM BIJUPIRÁ
XARÉU TEM DE FEIXE
SÃO ESSES OS PEIXES
QUE EU VEJO NO MAR
As palmas vieram de todos os lados. Os que estavam fora adentraram ao recinto. O ”enxame” que se produziu no entorno apavorou mais ainda Carapuça – se é que o desespero teria margem para aumentar. O cantador local suava frio. As mãos trêmulas mal tocavam as cordas da velha viola. Pediu ajuda aos Céus e rogou por todos os santos conhecidos – e inexistentes também. Tinha esperança de que um milagre acontecesse e lhe tirasse daquela situação desesperadora. Quem sabe se alguém puxasse uma “peixeira” e cortasse o pavio da lamparina. O arrependimento por ter aceitado o desafio inundava sua alma. Porém, era tarde. Todos ali o olhavam, esperando ansiosamente pela sua réplica. Suando frio e numa ação suicida, finalmente, lançou-se ao desconhecido e mandou:
TEM PEIXE JACU
PEIXE CARCARÁ
TEM PEIXE PREÁ
TEM PEIXE TATU
TEM PEIXE URUBU
E O PEIXE GAMBÁ
SE NÃO VÊ POR LÁ
ENTÃO NÃO SE QUEIXE
SÃO ESSES OS PEIXES
QUE EU NÃO VEJO NO MAR
O cantador da capital arregalou os olhos. Aquele matuto não podia estar brincando com ele. Nunca ouvira falar desses peixes. As pessoas da plateia, tão analfabetas quanto Carapuça, entreolharam-se e não pensaram duas vezes: ovacionaram o artista local.
O violeiro de Fortaleza nada podia fazer. Como convencer as pessoas dali de que aquilo que o outro citara não era peixe? Muito menos do mar? Nada diferenciava aquele público, encrustado no “meio do nada”, do cantador que o representava. Usou a única estratégia possível, que seria vencer o oponente pelo cansaço. Com certeza, o repertorio “nada marítimo” do matuto se esgotaria em breve e este não seria capaz de repetir a proeza por muito tempo. E caprichou:
TEM PEIXE CANÇÃO
TEM O PEIXE OLHETE
PEIXE XERELETE
PEIXE BODIÃO
PEIXE AGULHÃO
SALTEIRA A PULAR
ROBALO A BRINCAR
DE CONTAR NÃO DEIXE
SÃO ESSES OS PEIXES
QUE EU VEJO NO MAR
Mais aplausos para o homem da capital e, agora, a certeza de que o embate estava encerrado, com a derrota do cantador local. Porém, Carapuça tinha ganhado confiança. Não interessava para ele convencer o oponente, mas a plateia, que, assim como ele, tinha total desconhecimento do oceano e da vida marinha. Continuou com sua tática de transformar toda a fauna da Caatinga em peixe do mar. A partir dali, falou do peixe Calango, do peixe Guaxinim, do peixe Juriti, do peixe Veado, etc. e etc.
Esperto, o artista da capital entrou no jogo, prevendo que não venceria o opositor, a não ser que o desmentisse, e isso ele não faria. Seria contra a ética da arte. A essa altura, a bandeja já estava repleta de notas e o cachê garantido. Era o que importava. Cantaram ainda algumas canções e, no fim, os dois foram aclamados pelo público.
Quando à Carapuça, ao final do embate, foi chamado num canto por Zé André que disse-lhe, com ar de admiração:
– Antonio, me diga uma coisa: onde você aprendeu tudo isso? – e arrematou: – Vai saber nome de peixe assim no inferno!
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