Ednardo Rodrigues Brasil
Admitir que a morte é uma certeza; que todos nós teremos o encontro indesejado com esta; que não devemos temer os mortos, pois estes não podem causar mal algum, muitas pessoas, com algum conhecimento espiritual e aprofundamento religioso, até conseguem. Porém, a Necrofobia – medo de mortos ou coisas ligadas à morte, como cemitério, por exemplo – sempre assustou muita gente, principalmente nos lugares mais remotos, isolados.
O Cemitério das Lembranças acolheu, praticamente, todos os mortos de minha região. Situava-se num lugar ermo e, por muitas décadas, apenas uma residência havia nas proximidades do campo-santo. Na grande casa de pau-a-pique, moravam três irmãos solteirões, conhecidos apenas por Janoca, Bidia e Milu. Católico fervoroso, o trio encarava com muita tranquilidade o fato de morar quase dentro do cemitério.
Janoca, o mais velho e único homem da família, sofria da chamada doença de Blout, um distúrbio de alteração no crescimento da tíbia que, no seu caso, levou ao arqueamento total das pernas, tornando-se uma pessoa bem peculiar e de aparência que, inevitavelmente, chamava à atenção. Sempre vestido de branco, era comum Janoca fazer passeios noturnos por entre os túmulos, enquanto, de rosário numa das mão e lamparina na outra, tirava o terço. Aquilo, para nós, que perdíamos o sono com estórias de almas, não era meramente uma prova de coragem, mas de loucura total. Questionado sobre seus hábitos nada comuns, o homem simplesmente dizia:
– “Caboco Véi, os morto não faz mal a ninguém; eu tenho medo é dos vivo!”
Como a Lei da Natureza não falha, Janoca foi envelhecendo e, cada vez mais, reclamava das dores nas pernas, dentre outras coisas. Lamentava não poder mais trabalhar e que isso era equivalente a ser um “homem morto”. Mas a vida seguia.
Ao lado do Cemitério das Lembranças, passa a estrada que liga a atual BR-020 a alguns Distritos do Município. Nas décadas de 1970 e 1980 era comum passar por ali caminhões carregados, principalmente de algodão, produto abundante à época. A qualquer hora do dia ou da noite, poderia transitar por ali um bruto com destinos e mercadorias variados.
Certa noite, depois da caminhada noturna e do terço, Janoca dormia na tranquilidade de sua casinha, quando foi acordado por um barulho do motor engasgado e marteladas em lataria. Imaginou o óbvio. Devia ser algum caminhão quebrado.
Ser humano solidário que era, não pensou duas vezes. Pegou a lamparina debaixo da rede, puxou para fora o pavio, acendeu o fósforo e, seguindo o barulho, foi oferecer o socorro possível ao motorista.
Na escuridão total e próximo ao cemitério, o homem tentava desesperadamente uma solução rápida para o problema do veículo. De repente, percebe se aproximar a pequena chama de uma lamparina, o que já lhe arrepiou dos pés à cabeça. Beirou o desespero quando viu aquela criatura esquisita, de pernas tortas e totalmente de branco, segurando o objeto luminoso. Pensou em correr, porém, as pernas, praticamente paralisadas, não ajudavam.
Janoca aproximou-se e principiou uma conversa:
– “Tá precisando de ajuda, Cabôco Véi?”
O motorista quase sem voz, conseguiu responder:
– Amigo, preciso mover uma peça aqui, mas não tenho força suficiente para fazer isso sozinho.
Janoca tirou o grande chapéu de palha da cabeça, coçou a careca e lamentou:
– “Ô, Cabôco Véi, fico muito triste por num poder lhe ajudar. Fosse o tempo que eu era vivo…!”
A conversa se encerrou por aí. O motorista disparou numa carreira rumo à Fazenda Belmonte, de propriedade do Sr. Eduardo Patrício, lugar mais próximo dali. Lá chegando, bateu com desespero na porta do fazendeiro e pediu para entrar, pelo amor de Deus. Indagado pelo dono da casa sobre o seu desespero, o homem contou do defunto de pernas tortas que lhe oferecera ajuda. Sr. Eduardo Patrício, que era vizinho de Janoca, caiu na gargalhada e tentou esclarecer para o motorista o mal entendido. Argumentou que o homem, apesar da aparência estranha, era uma boa alma, sempre disposta a ajudar a quem por ali passasse e tivesse alguma dificuldade. Além disso, reiterou que Janoca estava “vivinho da silva”. Tempo perdido. O “chofé” pediu dormida e só saiu dali depois de clarear o dia.
Depois daquele encontro, aquele motorista ainda passou algumas vezes por aquela rota, mas, somente durante o dia e sem jamais conseguir tirar da memória a imagem do defunto de pernas tortas segurando a chama de outro mundo
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