Ferido de medo

Ednardo Rodrigues Brasil

Hoje, o Forró é reconhecido em todo o país e até influencia outros gêneros musicais dançantes. Embora tenha se originando na década de 1930, na região Nordeste, especificamente, em Pernambuco, esse reconhecimento só se deu a partir dos anos 1960 e 1970, principalmente, pela fama criada por seu principal ícone, Luiz Gonzaga. Além disso, com a migração nordestina para várias regiões do país, o Forró foi sendo disseminado e ganhando mais popularidade nos demais territórios da nação.
Na época de minha infância e adolescência, os tocadores de sanfona, principal instrumento do Forró, gozavam de um certo prestígio, eram bastante admirados e até, de certa forma, bajulados.
Na minha região, entre as décadas de 1970 e 1980, o sanfoneiro de maior fama era João Mucura, pouco estudioso, muito preguiçoso, mas, igualmente talentoso. Não conhecia as notas musicais, porém, tinha um ouvido inacreditável e dedos bastante habilidosos no manejo do instrumento. Acredito que não se empenhava no aperfeiçoamento de sua arte porque seu grande desejo era ser motorista de caminhão. Mesmo assim, Mucura era bastante solicitado e, frequentemente, animava as festas pela redondeza. Acompanhado, apenas, de pandeiro e triangulo, ele era garantia de boa música.
O sanfoneiro não era muito exigente com quem fosse tocar triângulo, poderia ser um qualquer, mas, já no pandeiro, só um percussionista lhe agradava: João Batista. Este morava num Município vizinho, mas, apesar da distância, era presença garantida no “conjunto” de João Mucura.
Entre uma data e outra, Mucura e seu conjunto foram contratados para tocar uma festa na localidade de Lajedo dos Rocha. A comunidade em questão não gozava de boa reputação, visto que, em eventos anteriores, várias brigas teriam acontecido. Segundo relatos, à época, peixeiras e revólveres eram, simplesmente, acessórios dos dançarinos. Hoje, pode parecer surreal, mas, naquele tempo era algo bastante comum.
Chegado o dia da festa, João Batista chegou cedo à casa de João Mucura, acompanhado de um amigo, que trouxera na garupa da bicicleta por mais de 40 km, pois era muito medroso e sequer cogitava andar sozinho. Almoçaram e, ao final da tarde, num caminhão que conduzia também dançarinos da comunidade local, partiram rumo ao evento.
Devido à distância considerável, chegaram ao anoitecer e foram logo se posicionando para o início da festa. O clube não passava de um quadrado de terra batida, cercado de arame farpado e, como era comum naquele tempo, não tinha palco para os artistas. Os músicos foram colocados no fundo da “quadra”. Ali, ficaram João Mucura, o triangulista, João Batista, e o amigo que o acompanhava. Atrás deles e da cerca, uma “capoeira de algodão” que, pelo clarão da lua, dava para ver que era bastante extensa.
Em pouco tempo, a quadra estava lotada e o dono da festa mandou que se começasse a tocar. Mal terminara a primeira música, começou a primeira briga. Ouviu-se a discussão, o tinir das facas, o alarde das mulheres. O “bolo” da confusão se dirigia na direção do conjunto. João Mucura pensava em correr, mas não podia abandonar o fole. O cara do triangulo protegeu-se atrás do sanfoneiro. João Batista tremia dos pés a cabeça e pensava em correr, mas as peixeiras se entrelaçavam a sua frente. De repente, um tiro.  Mais um, e outro… O estrondo dos disparos era aterrorizante. Era demais para João Batista, que rastejou por baixo das pernas dos briguentos e, de um só salto, pulou os oitos fios de arame da cerca que dava para a capoeira. Saiu correndo sem destino. Não sabia para onde estava indo, mas sabia onde não queria ficar.
A certa altura da fuga, alguém gritou:
– Espera por mim, macho!
Quando ouviu isso, o pandeirista ficou ainda mais apavorado e, sem sequer olhar para trás, alargou o passo. Porém, a voz soou novamente:
– Batista, sou eu macho, teu amigo!
Finalmente, João parou. Estava suado, exausto e descalço. Ficou aliviado por ver o amigo, porém o trauma dos tiros o mantinha apavorado. Sob o olhar incrédulo do amigo, João Batista despiu-se completamente e perguntou:
– Macho, tu tem um isqueiro aí?
– Tenho. – respondeu o amigo – Mas, pra quê?
João Batista abriu as pernas, estendeu os braços e, ainda desesperado, disse:
– Macho, pelo amor de Deus, “alumia” aqui pra ver se eu não tô baleado!
Após a averiguação, apenas alguns arranhões causados por galhos e poucos espinhos de carrapicho nos pés. O grande problema agora era encontrar o caminho de volta.

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