Entre caminhão e cantoria

Ednardo Rodrigues Brasil

Lembro de que, desde jovem, meu pai sonhava em possuir um caminhão. Talvez isso se explique pelos muitos anos em que trabalhou como ajudante de motoristas desses veículos sobre rodas. Ele estava sempre acompanhando meu tio Rodrigues, que durante décadas se dedicou ao transporte de carga de passageiros. Iam periodicamente para Boa Viagem levando pessoas, para Maranguape levando gado e para a Fazenda Canafístula – em Quixeramobim – levando algodão.
Em meados da década de 1970, finalmente, surgiu a oportunidade de meu pai realizar o sonho de ser proprietário de caminhão. Tio Rodrigues disse-lhe que Joaquim Rodrigues, um amigo em comum, teria um caminhão Chevrolet 64 para vender e propôs a meu pai uma sociedade na compra do caminhão.
Evidentemente, meu pai fico eufórico, mas não tinha capital suficiente para entrar com sua parte na compra. Mesmo assim, acompanhado de meu tio, foi à casa de Joaquim. Depois de algumas conversações, o vendedor aceitou que meu pai incluísse no pagamento alguns objetos e fecharam negócio. Embora pequeno, recordo-me de que meu pai fez uma verdadeira “limpa” em casa. Pra desespero de minha mãe, ele se desfez do rádio, máquina de costura, bicicleta, relógio, dentre outros bens essenciais.
Juntados o pouco dinheiro e os objetos, os sócios foram buscar a nova aquisição. Era um caminhão de boleia arredondada, nas cores verde e branca, e curiosamente apelidado de “Bucho de Calango”. Apesar do nome estranho, em casa, ficamos em polvorosa diante do possante. Alegria que durou pouquíssimo tempo. Na primeira viagem, o Bucho de Calango pifou.
Revoltados, meu pai e tio Rodrigues não tiveram dúvida e devolveram o caminhão ao antigo dono. O pai de Joaquim Rodrigues, também Joaquim, na frente de meu pai, disse ao filho que tinha lhe alertado para não fazer negócio com um cara chamado “Chico passarim”. – “Chico Cancão” era o apelido do meu velho. Conhecendo e respeitando o genitor do vendedor, meu pai simplesmente riu. Para felicidade de minha mãe, desfeito o negócio, meu pai trouxe de volta para casa os objetos de estimação da família.
A alusão que aqui faço à negociação do caminhão tem o intuito de apresentar Joaquim Pai e Joaquim Filho, figuras singulares que vim a conhecer no caso do Bucho de Calango. Na verdade, o episódio que passo a narrar nada tem a ver com comércio de carros ou coisa do tipo.
Apesar de ser especialista em motores e amantes de carros, Joaquim Filho tinha um espirito aventureiro e jamais hesitava em encarar novos desafios. De uma feita, por exemplo, adquiriu em uma negociação, uma viola. De posse do instrumento, não teve dúvidas: iria ingressar no mundo da cantoria. À época, os chamados repentistas eram bastante admirados no Sertão, e suas apresentações, além de certa fama, ainda lhes rendiam algum dinheiro.
Porém, vale ressaltar um detalhe. Qualquer poeta um com mínimos conhecimentos da arte da rima arvora-se a escrever um cordel, e não são poucos. Mas improvisar entre um baião e outro da viola exige o dom e a técnica de criar versos na hora. Repentistas cantam para uma plateia sempre crítica, generosa com os bons poetas, e implacável com os ruins de poesia. Portanto não tem como se fazer de cantador, ou se é ou não.
Mesmo assim, com muita determinação e esforço, Joaquim aprendeu a dominar, minimamente, o instrumento e, algum tempo depois, agendou a sua estreia no mundo do cancioneiro popular. Um amigo próximo cedeu-lhe o espaço e convidou outras pessoas a se fazerem presente ao evento, inclusive Joaquim, o pai, que, mesmo mostrando alguma resistência, confirmou presença.
A fim de situar o leitor, cito aqui alguns traços da personalidade do “velho Joaquim”. Era um senhor respeitado, porém reconhecido na região pela sua pouca paciência, baixa tolerância com algumas coisas, pela verdade em suas palavras, além de fortes traços de ironia e sarcasmo.
Chegado o dia do show de estreia do filho, lá estava o desconfiado do pai, sentado em uma cadeira no canto do alpendre, a uma distância considerável do novo “cantador”. Aparentava um certo ar de impaciência, mas se manteve atento.
Joaquim filho acolheu os presentes com alguns improvisos, construídos, visivelmente, com certa dificuldade; titubeante, procurou atender alguns pedidos da plateia; interpretou algumas canções; por fim, recolheu os trocados colocados na bandeja ao centro do local, agradeceu aos presentes e deu por encerrada a apresentação. Aplausos tímidos e um convite do dono da casa para um cafezinho.
Depois do café, seu Joaquim dirigiu-se ao dono da casa a fim de despedir-se. O anfitrião agradeceu ao cidadão pela presença e antes que este saísse, lançou-lhe a pergunta:
– Seu Joaquim, o que o senhor achou da cantoria do seu filho?
Sem pensar ou pestanejar, o homem foi direto:
– Meu amigo, a primeira vez que o cabra vier assistir, a gente perdoa, porque não tem vergonha mesmo.
Agradeceu pela hospitalidade e foi embora.
Diz-se que, sabendo do comentário do pai, Joaquim Filho abandonou a viola, voltou às suas ferramentas e deu uma “guaribada” no Bucho de Calango para “enfiar” no próximo desavisado.

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