A Fazenda Boqueirão, de propriedade do meu bisavô, sempre teve muitos moradores – assim eram chamadas as pessoas que não tinham casa própria e residiam em moradias da propriedade, além de trabalharem em regime de parceria – assim como as demais terras da região. As gerações foram passando e cada herdeiro foi se assetando em alguma parte da fazenda, tendo, inclusive, seus próprios moradores. Meu avô tinha alguns, dentre estes, Seu Mané Baleia, que sempre foi chamado dessa forma. Raridade na época era alguém ser chamado pelo nome de registro.
O morador em questão tinha uma família numerosa, composta, majoritariamente, por membros do sexo masculino: seis meninos e uma menina. Os rapazes da casa tinham muitos amigos, com os quais compartilhavam todas as coisas comuns à idade. Mas, nenhum dos amigos era tão íntimo na casa de Seu Mané quanto Barrinha.
Barrinha, um moleque de mais ou menos dezessete anos, fazia de tudo junto com os filhos de Seu Mané e Dona Dulce. Pescavam, caçavam, jogavam futebol, iam pras tertúlias, enfim, era como um membro da família, tendo, inclusive, a liberdade de dormir na casa do casal.
Dona Dulce, como todas as donas de casa da época, madrugava para passar o café e preparar o “quebra-jejum” para os homens levarem para o roçado. Era uma mulata esbelta, ativa e aparentava ter muito menos do que os seus quase cinquenta anos.
Certo dia, porém, por volta das cinco da manhã, ao se encaminhar para a cozinha a fim de tomar café, Seu Baleia não encontrou Dona Dulce. Chamou por ela algumas vezes, mas não obteve resposta. Achou estranho, afinal, isso nunca tinha acontecido e ela jamais sairia de casa a uma hora daquela.
Os gritos do homem acordou todos da casa, que pularam de suas redes e começaram a especular por onde andaria Dona Dulce. Ao reunirem-se na cozinha, perceberam que faltava mais alguém: Barrinha. Por coincidência, o amigo também tinha dormido na casa na noite anterior. Desconfiança no ar. Não! Não poderia ser. Será?
Espalharam-se todos à procura da senhora. Olha rastro aqui, pergunta-se ali, procura-se acolá. Nada. Porém, como nada se faz escondido debaixo do céu, alguém noticiou que vira o casal passando, de bicicleta, madrugada afora. Agora, não havia mais dúvidas, Dulce e Barrinha tinham mesmo fugido juntos.
A tristeza na casa de Baleia era indescritível. Aquilo era uma dupla traição. Dulce era a mulher respeitosa, e Barrinha, o filho que a família adotara de coração. Todos estavam visivelmente indignados, mas Curió, o filho mais novo, era o mais revoltado. Mataria, esfolaria vivo, mandaria para o inferno se encontrasse Barrinha.
Naquela época, o proprietário da terra onde se instalava o morador era uma mescla de patrão, conselheiro, mediador de conflitos, juiz, delegado e policial. Assim sendo, Curió, revoltado como estava, com certeza, iria à casa de meu avô registrar a queixa, afinal, o pai de Barrinha também era seu morador.
Seu França era um sujeito sério, mas de um sarcasmo inominável e não perdia oportunidade de fazer piada, até mesmo da desgraça alheia. Para azar de Curió, meu avô soube do caso muito antes da “família Baleia” e já esperava pelo queixume.
Pouco depois do almoço, meu avô estava recostado na velha espreguiçadeira, peça de presença constante no alpendre de sua grande casa, quando de repente chega o filho de Seu Baleia. Ofegante e de rosto avermelhado de tanto ódio, Curió mandou logo a real:
– Seu França, eu vim aqui fazer uma queixa!
Calmamente, meu avô fingiu desconhecer o ocorrido, ergueu a cabeça e se dirigiu ao garoto:
– Calma, “vein”, o que houve?
Quase chorando, Curió disse:
– “Seu França”, aquele cabra Barrinha roubou a minha mãe!
Tranquilamente e com um sorriso de canto de boca, vovô arrematou:
– E foi uma quantia até grande?
Percebendo a ironia e o sarcasmo de “Seu França”, Curió ficou branco, roxo, vermelho e, sem dizer uma palavra, montou sua bicicleta e sumiu na estrada.
Dona Dulce e Barrinha nunca mais voltaram à velha Fazenda Boqueirão.
Um comentário em “A mãe roubada”
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.
Pingback: CRÔNICAS E POESIAS | História de Boa Viagem